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Entre a memória e o imaginário

Entre a memória e o imaginário

Gostaria que você falasse um pouco sobre como vê a relação da imagem fotográfica com a performance.

Minha fotografia nasce da necessidade física e mental de sair do ateliê, ambiente tóxico, cheio de tintas e solventes, solidão e isolamento. Fotografar é um pretexto para viver certas aventuras que depois são pintadas com base no material fotográfico. A fotografia surge antes, na cabeça, vem pronta. No ateliê, em estudos de caderno, eu preparo um guia, um mapa da produção com story-board, indicação de figurino (tecidos, design, costureira), maquiagem, cabelo, objetos de cena,

locação, logística, orçamento e a viagem. Além disso faço uma cuidadosa pesquisa da atriz. Então a hora do ato fotográfico é um dos muitos instantes do todo. A foto emoldurada no museu é a representação de uma longa construção. Nessa estrutura o papel da atriz é central. Discuto sua performance do mesmo modo que um diretor de Cinema trabalha com seus atores. No momento do click sinto que estou no meu set de filmagem. A foto é o frame de um filme que nunca existiu. Não considero minha fotografia pós-performance, ela é antes de tudo pré-cinema. É meu namoro com a sétima arte. A performance é da atriz guiada pelo roteiro e o diretor. Símbolo da Anima, representação do inconsciente masculino em forma de múltiplas Deusas.

Como vê a questão da autoria na imagem fotográfica?

Meu processo fotográfico vem do cinema. Então uso essa base para os possíveis questionamentos da autoria. Na sétima arte cada profissional pode ter o filme em seu portfólio. É coletivo. Mas poderá apontar apenas o item pelo qual foi responsável e afirmar a autoria. A costureira coseu o vestido, mas eu desenhei e criei o figurino. Além de pesquisar tecidos e assessórios. Quem é a atriz na fotografia? Giovanna Simões. Ela tem essa imagem em seu portfólio de atriz. Se a entrevistarem, dirá o mesmo nesse ponto: “Essa é uma fotografia do artista plástico Bruno Vilela, eu sou a atriz boiando no rio, vestida de Valkiria, no topo dos colchões, etc...” No cinema é tudo muito claro, não há esse tipo de questionamento.

Queria que você me falasse um pouco sobre os limiares da fotografia no teu trabalho. Há algo com um “espaço fotográfico”? Como esse espaço se agencia a outras expressões (pintura, vídeo...)?

Há um espaço fotográfico, sim, mas é o mesmo reservado ao diretor de fotografia no cinema. É a fusão do pensamento pictórico de um artista plástico, pintor, com o modo de trabalho de um cineasta, mas que tem a técnica, equipamento e logística de um fotógrafo. Às vezes a fotografia é meio para o desenho. Já encomendei um elmo de Ogum a um ferreiro de orixá, para produzir um retrato do meu amigo Rodrigo Braga. A partir dessa imagem fiz o desenho.

Quem são teus fotógrafos de referência (ou artistas que você relaciona à formação do teu “olhar fotográfico”)?

Em primeiro lugar o cinema. A fotografia cinematográfica é minha grande referência. Atualmente as cores da era technicolor de 1922 a 1952 são influência direta no meu desenho. É possível ver essas cores nos pastéis. Eu projeto imagens de família no papel preenchido por pastel seco e vou “revelando” a imagem com borracha. A experiência de estar na frente da projeção, nesse caso abaixo uma imagem de 2 metros, é o mesmo sentimento do expectador no cinema. O desenho nasce da revelação da fotografia, memória exposta no papel, não por químicos, mas pela mão humana. Como diria David Hockney: "Optics don't make marks”.

A influência é muito mais da fotografia simples, amadora, de família, base para as obras. O simples fato de tirar os olhos e cortar o quadro torna uma foto banal de família, onde a mãe ajuda o filho a cortar o bolo em seu primeiro aniversário, num filme de terror.

Mas falando dos autores, dos fotógrafos, minhas grandes influências são: Jeff Wall, Rosangela Rennó, Rodrigo Braga e meu irmão Márcio Vilela.

Gostaria que você falasse um pouco sobre técnica e criação. Sobre a relação entre processos e conteúdos na produção da imagem.

A técnica segue uma ordem muito organizada: pesquisa de um mito (ou criação de uma mitologia pessoal) > estudos no caderno > pesquisa de tecidos e objetos > produção do figurino e maquiagem > escolha da atriz > logística e deslocamento para a locação > produção da fotografia > edição > tratamento de imagem > impressão > exposição > publicação.

Quanto à reprodução das imagens. Quantas cópias costuma produzir para cada trabalho? Quais suas preferências quanto à impressão (dimensão, tipo de material)? Como pensa que essas preferências se articulam com o mercado hoje?

Em geral faço edições de 5 + P.A. Cada trabalho pede um material. Bibbdi bobbdi boo (2009), por ser bem pop, exigiu metacrilato. Cabeça de santo (2010) e Barbarie (2014) já são mais profundos, necessitaram de molduras tradicionais e impressão em papel de algodão.

Quanto aos conceitos agenciados à fotografia. Há algum que te mobiliza mais?

Não poderia responder um, pois são dois com o mesmo grau de importância: memória e imaginário. Memória quando uso a fotografia como base para o trabalho de pintura e desenho. Mas, recentemente, transformei uma fotografia antiga de família num trabalho de artes plásticas juntando a ela um texto. O bastardo (2015) é o começo de uma nova série que está numa fronteira entre fotografia e literatura. Acabei de escrever meu primeiro livro, A sala verde, um thriller de horror psicológico onde as fotos de família são bases para o enredo. Está tudo interligado então.

Já a mobilização do imaginário surge quando transformo uma mitologia ancestral dos povos primitivos (Cabeça de santo), ou um conto de fadas (A Princesa e a ervilha), em fotografia. Fotos como Cordão de prata (2014) ou O Bastardo, são, na minha opinião, uma evolução, pois passei a criar uma mitologia pessoal. Tudo que veio antes foi uma grande escola.

 

Como invadir a “violência preservada” de uma obra?

Da máxima banalidade de uma fotografia familiar (Fim de festa, 2012) revela-se uma atmosfera fantasmática, um cenário de horror. A pintura de Bruno Vilela vai em direção ao centro vazio dessa cena, perscrutando a imagem fotográfica naquilo que ela possui de verdade. Mas note: verdade enquanto essência indesvendável de um crime, levando consigo a dupla negação de algo que não pode deixar de não ser conhecido (a-letheia; não-sombra; unclosedness; des-velamento) e que por isso retorna. Então, encontramo-nos diante de figuras elididas. Negatividade que permite ao desejo retornar a um centro vazio circulado pela criação. Poética que é também desde o início um recomeço.     

Haveria, nesta estratégia fotográfica de Bruno Vilela, um apetite negativo, segundo o qual a “nulidade tem um peso” e a “inconsistência significa tenacidade1”? O projeto O Bastardo vem reforçar essa leitura. Como W.G. Sebald, que lançando mão de documentos autorreferentes, ancora a “consciência instável (...) na vastidão e na acuidade dos detalhes2”, Vilela ressalta o movimento de retorno a que está predestinado (o significante que atravessa gerações com seu poder oracular). Cria seu próprio “labirinto do Não” (vivenciada na autodestruição do pequeno bastardo) no qual encontramos uma escrita, uma lógica, um funcionamento fotográfico. Obra que intercala imagens banalíssimas e narrativas mitológicas e faz-nos perguntar sobre a natureza do phátos misterioso que essas imagens acrescentam à nossa vida3.

Contudo, perguntamos não apenas como “fotos e outras relíquias visuais reproduzidas nas páginas se tornam um delicado índice de caráter pretérito4”, mas por que afinal essa impregnação do vestígio em Vilela é consubstancial ao discurso da negatividade aqui insinuada?

Blanchot nos diz: “Um livro, mesmo fragmentário, possui um centro que o atrai: centro esse que não é fixo, mas se desloca pela pressão do livro pelas circunstâncias de sua composição. Centro fixo também, que se desloca, é verdade, sem deixar de ser o mesmo e tornando-se sempre mais central, mais esquivo, mais incerto, e mais imperioso. Aquele que escreve o livro, escreve-o por desejo, por ignorância desse centro5”.

Qual é o centro de uma proposição fotográfica ? Essa custosa pergunta raramente é feita em uma crítica, mas é justamente um dos papéis destinados a nós “leitores”. Essa pergunta é realmente custosa, porque de fato não está dirigida às imagens, mas a “obra”, à enunciação, e esta é furtiva para o próprio artista. Talvez devamos ainda insistir: o que está em jogo na crítica contemporânea da imagem fotográfica é a construção de um “espaço fotográfico”, na mesma difícil acepção desse espaço pensada por Blanchot em relação à criação poética: “a obra plástica tem sobre a obra verbal a vantagem de tornar mais manifesto o vazio exclusivo no interior do qual parece querer permanecer, longe dos olhares6”. Como invadir, então, a “violência preservada” de uma obra? Bruno Vilela não para de nos interpelar com essa questão.     

1 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. 7ª ed. P.50
2 SONTAG, Susan. Questão de ênfase: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. P.68
3 id., ib., p.69
4 id., ib., p.69
5 BLANCHOT, M. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. P. 7
6 Id., Ib., P. 209

Projeto de:

PAULO CARVALHO

Paulo Carvalho é jornalista e pesquisador responsável pelo site. Estuda a relação entre fotografia e tédio no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.

SCHNEIDER CARPEGGIANI

Schneider Carpeggiani é responsável pela edição de texto do site. É jornalista, doutor em teoria literária e curador.

 

 

HALLINA BELTRÃO

Hallina Beltrão é designer responsável pelo site. Atua como ilustradora e designer gráfica.



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