As travessias de Bruno Vilela
Conta a mitologia grega que Pã, deus dos bosques, rebanhos e pastores, amedrontava aqueles que tinham de atravessar noites em matas escuras e misteriosas. Divindade campestre, personificação da natureza, Pã despertava o imaginário supersticioso dos mortais, que, por sua vez, o associavam aos pavores súbitos, sem explicação aparente. Thomas Bulfinch (1796-1867) conta essa história em seu famoso A Idade da Fábula, ou Livro de ouro da mitologia, e escreve que os chamados “terror de pânico” ou simplesmente pânico passaram a ser atribuídos a esses medos repentinos. Tomado pela mitologia, o artista Bruno Vilela gosta de compartilhar saberes dessa estirpe, seja em sua arte ou em sua vida – dimensões que, aliás, não se separam. Bruno lembra que a palavra “pânico”, tão em uso hoje em dia, em pleno solo de concreto, vem de Pã e revela que, com esta figura, já “tomou um chá e fumou um charuto”, mas no momento atravessa “a ponte” sem medo.
“Quando as pessoas estão insatisfeitas com um casamento ou um emprego, por exemplo, e permanecem neles; quando não conseguem dar o salto e se apegam a uma estrutura de vida falida, a água fica parada e apodrece. Então, algumas decidem mudar de uma vida para outra e atravessam a ponte. Nesse caminho, elas geralmente encontram Pã. O que acontece é que algumas pessoas ficam com medo e voltam, mas é preciso pirar com Pã, mergulhar no turbilhão, e seguir”, explicou Bruno Vilela, cuja fase atual de vida-arte encontra-se, como ele diz, em uma “zona fronteiriça”. Ou seja, algo que poderia estar entre o desenho e a pintura; entre a fama e o anonimato; entre a vida e a arte; a luz e a escuridão; ou, mesmo, entre o Brasil e Portugal, onde mora seu irmão e artista, Márcio Vilela, e para onde Bruno tem ido desde o ano passado.
Seja como for, a trajetória do artista pernambucano está em plena transformação e ascendência. Em 2014, por exemplo, teve a exposição individual Animattack curada por Moacir dos Anjos, na galeria Amparo 60, no Recife, e passou dois meses em residência artística no Carpe Diem Arte e Pesquisa, sediado no edifício secular do Palácio Pombal, em Lisboa. Desta vez, Bruno foi a convite da instituição cultural portuguesa e com apoio do colecionador Sérgio Carvalho, que vive em Brasília e tem em sua coleção nomes de diferentes estados do Brasil, incluindo Pernambuco, como Marcelo Silveira, Oriana Duarte e Amanda Melo. Seu conjunto de arte contemporânea brasileira ganhou tanta expressão que Sérgio foi chamado a expor este ano, no Paço das Artes, em São Paulo, parte de suas obras na mostra Duplo olhar – Coleção Sérgio Carvalho. Não há como não lembrar o ímpeto de pessoas como o colecionador e galerista pernambucano Marcantonio Vilaça (1962-2000). Ele parece seguir a mesma linha, apostando em artistas emergentes, como é o caso de Bruno Vilela, que ainda não estava em sua coleção. Agora, parte dos trabalhos produzidos pelo artista em Portugal, com seu apoio, irá se juntar ao acervo do colecionador.
ALÉM-MAR
Em setembro de 2015, Bruno volta a atravessar o mar para mostrar, no mesmo local de sua residência, o resultado de sua experimentação artística na capital portuguesa. Na exposição, serão expostos seus estudos, feitos a partir de paisagens fotografadas em viagens por diferentes regiões de Portugal; pinturas a óleo, em diversos tamanhos, que ele produzirá no primeiro semestre deste próximo ano, com a mesma fonte de inspiração, as paisagens; e um caderno de artista, que é uma espécie de diário da vida em Lisboa. “No dia da abertura, vai ser lançada uma caixa com duas publicações: o catálogo das obras e dos estudos, e uma cópia em fac-símile do diário. Além disso, vai haver o lançamento do curta documentário feito por Beto Brant e Cláudio Assis sobre minha produção”, antecipou o artista, enquanto ainda estava em residência, em novembro passado. O curta, aliás, também foi realizado em 2014.
E para onde leva agora a ponte a que se referiu Bruno? “Acredito que meu trabalho tenha amadurecido e está apontando para um caminho sem volta. O principal é a vida e a arte é resultado dessa vida. Viajar, conhecer pessoas, estar próximo dos amigos”, respondeu. Para definir a sua obra, gosta de remeter à ideia de contrastes ou à noção de escuridão e luz do mito de Perséfone, a deusa que fica entre a terra e o mundo dos mortos, simbolizando primavera e inverno. Na linguagem de Bruno, no campo das artes, isso se reflete tanto em seus momentos de recolhimento e criação no ateliê, quanto nos de holofotes expositivos. Reflete também na paleta que usa em pinturas e desenhos, ora soturnos, ora solares – nos últimos tempos, muito mais misteriosos e carregados de simbologias.
Nos trabalhos que estão por vir, fruto de sua vivência intensa em terras portuguesas, ele mantém, de certa maneira, os tons escuros – como o preto, o azul profundo, o roxo e o verde musgo – presentes em Voodoo drama e mesmo Animattack, suas últimas exposições no Recife, pela Amparo 60. Em Portugal, estas cores coincidiram, de certa maneira, aliás, com as paisagens outonais/invernais que encontrou por lá, entre outubro e novembro, nos locais por onde passou. Está nesta lista Serra dos Gerês, Serra da Estrela, Cabo da Roca, Sintra, Praia de Nazaré e Tomar, para onde viajou nos finais de semana, com intuito de colher imagens para desenvolver seus estudos no ateliê do Palácio Pombal, de segunda a sexta. “No Recife, eu trabalho todos os dias da semana, o dia todo, como um funcionário. Mas aqui é diferente, eu tô em função da arte. Primeiro, começo sempre com a memória fresca, de uma viagem incrível que acabei de fazer. Depois, estou no sótão do palácio de Marquês de Pombal. Vivo cercado de história, parece um filme. Isso vai mexendo com a cabeça e o trabalho é outro”, disse ainda em Portugal.
SELVAGEM
Interessante notar que Bruno Vilela está sempre próximo da natureza, como a própria mitologia ou os lugares que ele escolheu para viajar no país dos navegantes. A Serra da Estrela, por exemplo, abriga um parque natural de ecoturismo, com montanhas e vegetação típica. O Cabo da Roca pertence a outro parque natural português, o de Sintra Cascais, com paisagens espetaculares. O mesmo pode se dizer de Serra dos Gerês, a segunda maior elevação de Portugal continental, com 1.546 metros de altitude, ou da Praia de Nazaré, que é pico de surfe. Nas andanças do artista, somente Sintra e Tomar têm mais carga histórica do que natural. Mesmo assim, ele fotografou florestas aí. No Brasil, não costuma ser diferente para Bruno, apaixonado por destinos como a Chapada Diamantina, na Bahia, onde já desenvolveu série de trabalhos fotográficos como Búfalo branco e Ofélia, que tem a artista Gio Simões Glasner como intérprete de suas personagens.
Mesmo em Lisboa, “fez um bando de imagens no Jardim Botânico e no parque de Monsanto”, como conta Bruno. Um dos estudos resultou no desenho em pastel preto de dois ciprestes, árvores do tipo pinheiro ou coníferas, de zonas temperadas e comumente vistas em cemitérios. Para o artista, a imagem do cipreste lembrou chifres e foi assim que intitulou seu trabalho de O Diabo, que estará presente na exposição de 2015, no Carpe Diem. É curioso como na legenda da imagem, postada em seu perfil no Facebook, ele prescreve o seguinte comentário: “A Natureza é a Igreja do Diabo”. Para Bruno, essa relação com a natureza é, antes, a ponte para uma dimensão selvagem e misteriosa, mesmo quando ele se fixa mais no aspecto humano.
O quadro O ancestral (óleo sobre tela, 150 x 200 cm), presente na citada Animattack, ilustra essa noção. Como descreve o curador Moacir dos Anjos, no texto da exposição, “nele, vê-se uma figura entre homem e animal – ou quiçá híbrido de gente e espírito – que dá as costas a este mundo do lado de cá e adentra uma floresta escura. Faz recordar que esses são trabalhos que demandam, de quem os vê, atentar para o que está além do que eles podem jamais exibir”. É como se Bruno Vilela espreitasse as elipses de nossa alma e transformasse em traço, em pincelada, nossas dimensões naturais mais fantásticas e profundas. A missão de Bruno é um pouco apontar para esse lugar, mexer com nosso imaginário. O próprio conceito de Animattack nasce da junção do termo “anima”, de Carl Jung, com a ideia de ataque e pânico associado à entidade da floresta.
Podemos dizer que isso é amadurecimento mesmo, pois não é de hoje que o artista vasculha o seu lado bicho e fareja os caminhos de sua ancestralidade. Desde as ninfas com meinhas listradas a figuras sombrias, como a da obra O ancestral, a carga mitológica e psicológica faz parte do arsenal criativo de Bruno. São temas também caros à história da arte, mas na mão do artista eles se atualizam e ressurgem sob novas feições.
Olivia Mindelo